INTRODUÇÃO
Por Carlos Águia
Nunca
tive (e nem acredito que se possa ter) a noção exata do alcance da poesia.
Tempos atrás eu lia e escrevia críticas de romances, contos, crônicas e aquilo
tudo fazia algum sentido para mim. Mas quando se tratava da apreciação de
poemas a coisa se complicava bastante e o esforço parecia ter sido sempre em
vão. A poesia escapulia. E nem era tanto pela “imperícia” de quem se debruçava
sobre ela num esforço de decifração. É que ela própria, por natureza, se
esquivava de qualquer análise que não fosse a comunhão tácita e silenciosa com
o que ela tinha pretendido dizer.
Licenciei-me
do cargo de professor por problemas de saúde e fui para um sítio afastado, na
zona rural à beira de uma rodovia asfaltada cujo entroncamento me remetia ao
passado de minha juventude já distante.
Compreendi,
silenciosamente, que éramos todos portadores da mesma nostalgia complacente do
passado e que nos enchíamos de lembranças do que nunca tinha havido e
percorríamos os fatos com uma grande carga de mentira e saudade eloqüente, como
se fôssemos (ou tivéssemos sido) algo além de nada e tivéssemos tido o nosso
papel num cenário desaparecido.
Protagonistas
de uma realidade sem causa, mas tida como importante enquanto nos fazíamos
viver. Pensava nessas coisas enquanto olhava as árvores e a sombra delas e a
minha se fundiam no espelho das águas. Um convite recebido nas vésperas me
perturbava e eu não sabia o que fazer: não me sentia em condições de atendê-lo,
mas custava-me dizer que não podia, em se tratando da poesia do meu apreciado amigo.
A editora que estava publicando as suas obras pediu-me para escrever a
introdução ao seu volume de versos.
Trata-se
de uma breve apreciação de toda a sua produção até o momento, distribuída por vários
livros, entre inéditos e publicados em pequenas tiragens. Arrisco a dizer (para
espanto talvez de quem esteja lendo) que o Milton Rezende é um autor romântico,
no sentido mais abrangente do termo e desvinculado, logicamente, dos preceitos
da escola romântica vigente no século XIX.
Ele
é um escritor romântico na essência e o é também na vida, pois pude conhecê-lo
e conviver com ele por muitos anos – na verdade, desde que me entendo por gente.
Portanto, eu peço que considerem ao menos a minha opinião, antes de virem me
contrapor recitando alguns duros poemas do autor em questão e destacando
justamente a revolta subjacente dos seus versos e a contemporaneidade dos temas
do seu discurso.
Acontece
que a amargura, a desilusão e a ironia presentes na obra do autor são na
verdade características de toda a grande poesia que se faz desde sempre, mas há
um humor secreto na literatura do Milton, que lhe é bastante peculiar, e que
nos faz rir e chorar enquanto somos tocados e emocionados pela beleza e
profundidade dos seus versos.
Neste
poeta eu percebo que a sensibilidade e a simplicidade são as chaves que
permitem penetrar no seu universo particular e único: um jeito diferente,
especial e todo próprio de captar a realidade e devolvê-la depois na forma de
uma interpretação bastante pessoal e diversa do senso comum, mas que
complementa a realidade com um elemento novo que geralmente nos escapa em nossa
percepção do cotidiano.
Faço
questão de não citar nenhum de seus versos neste pequeno estudo, justamente
para não induzir e nem tentar demonstrar aos leitores a justeza das minhas
colocações. Cabe a quem interessar, que busquem no conjunto dessa obra,
elementos do que eu digo ou mesmo a negação deles, pois nada substituirá a
leitura dos poemas.
Além
do mais eu percebo a mesma coisa, essas mesmas características, também na sua
prosa. No seu livro “A Magia e a Arte dos Cemitérios”, por exemplo, eu sinto a
mesma sensação que tenho ao ler os seus poemas, como se fossem desdobramentos
de um mesmo espírito inquieto e perdido, no que isso significa em termos de
procura inócua e tentativas de desvendamento, à sombra do grande mistério que é
a vida, a morte e todos os enigmas do amor. Eu soube, inclusive, que a idéia do
autor é poder concluir uma trilogia iniciada com a publicação do livro sobre a sua
terra natal, “De São Sebastião dos Aflitos a Ervália – Uma Introdução”. Parece
que o projeto do terceiro e último volume dessa “Trilogia das Afinidades” teria
algo a ver com a música e com o rock especificamente. O mesmo raciocínio se
aplica também ao inédito “Mais uma Xícara de Café”, e aos artigos de “Textos e
Ensaios”, publicados recentemente no formato livro.
Em
“O Acaso das Manhãs”, seu livro de estréia, publicado em 1986, o autor contava
então 24 anos e o seu caminho já estava delineado. A seqüência do seu fazer
poético só fez confirmar as tendências e seu estilo bastante característico. Em
1989 aparecia “Areia (À Fragmentação da Pedra)”, trazendo um certo
aprofundamento de suas temáticas básicas. O terceiro livro, “Inventário de
Sombras” foi editado em 1997 e pode-se dizer que seguia a mesma linha. Não
quero dizer com isso que o autor tornava-se repetitivo, pois cada volume trazia
novos desdobramentos e explorava outros ângulos dos temas desenvolvidos. A
solidão, o amor e a morte sempre foram assuntos recorrentes e perpassam toda a
sua obra. Em 2006 surgia “A Sentinela em Fuga e Outras Ausências” e mesclava a
produção atual com alguns poemas que tinham ficado para trás e que foram agora
incluídos, “zerando” de uma certa forma a sua trajetória emocional, numa feliz
combinação de densidade e conteúdo.
Percebo
algumas mudanças sutis em seu livro “Uma Escada que Deságua no Silêncio”.
Parece-me que o autor foi mais evocativo e buscou resgatar algumas lembranças
da infância e juventude que estavam guardadas na sua memória de poeta.
Paralelamente a isso, seguiu como já vinha fazendo em seus trabalhos
anteriores, em simultaneidades de aspectos interessantes e singulares. O que
virá depois? Somente o tempo nos dirá, mas conversando com o próprio Milton
Rezende num banco rústico de madeira ele me pareceu, não obstante uma certa
desesperança e cansaço, cheio de planos e de projetos futuros. A ilusão é o que
nos move, assim ele me dizia, sorrindo vagamente e com os olhos marejados.
A
vida nos prepara muitas ciladas e rupturas e o comportamento humano que eu
venho observando em meu consultório médico constitui matéria inesgotável para
os homens dotados de alma sensível e interpretativa, como é o caso dos escritores
e poetas, contudo não deve ser fácil a tarefa de estar o tempo todo se
confrontando consigo mesmo diante de um espelho perverso que reflete a
humanidade em seus momentos de grandeza e terrível desajuste de uma espécie
fadada ao aniquilamento, tal como se percebe claramente neste novo volume de
poemas “O Jardim Simultâneo”.
Creio
que junto com o Milton possam existir mais uns três ou quatro no mesmo nível,
dentro da atual literatura brasileira, e é muito bom saber isso: que existem
pessoas decifrando o vazio e dando um significado maior às nossas existências,
para além do que temos visto estampado como o resultado coletivo do que se tem
produzido, e que é muito pouco se lembrarmos de toda a tradição humanista daqueles
grandes autores do passado. Principalmente Fernando Pessoa, Drummond e Augusto dos
Anjos. Contudo ninguém poderia olhar para nenhum deles sem se sentir feliz e
ofuscado, pois eles são raros, rarefeitos e necessários. O desafio é seguir
vivendo, olhando de soslaio.
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Carlos
Águia é médico e professor aposentado. Fundador e único membro da Ideutopia, já
desativada.