sábado, 31 de dezembro de 2011

Mensagens

PASSAGEM DO ANO
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Por Carlos Drummond de Andrade
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O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com
[sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
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O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
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Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
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O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
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Surge a manhã de um novo ano.
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As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
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(Do livro A rosa do povo, Editora Record, 1984)

sábado, 17 de dezembro de 2011

Comentário


MILTON REZENDE, meu conterrâneo de Ervália, atesta que os ares de lá são benéficos à poesia. Este “A Sentinela em fuga” já é seu quarto livro de poemas e seguramente o mais bem realizado. Já havíamos falado aqui (09.10.2010) sobre seu livro anterior, “Uma escada que deságua no silêncio”, do qual demos então um curto poema. O novo livro, com seu título sugestivo, abre com uma composição de grande força poética, que também não podemos deixar de transcrever: “A Queda. Não digo que estou/ no fundo do poço/ porque este não é mensurável/ e sempre se pode cair mais ainda./Mas estou numa queda livre/ e vertiginosa./ A roupa do passado não me serve,/o presente é roto / e estou sem vestes para o futuro. /E numa queda os laços vão se rompendo/ se dissolvendo, / desagregando-se./Nenhum laço segura um homem/ que cai por muito tempo./ A dignidade é uma palavra para pessoas de pé./ Na horizontal os conceitos são outros”

(Gaveta do Ivo - 01/06/2011), por Ivo Barroso.