quarta-feira, 7 de maio de 2014

PORTAL DA DOR

“porque a morte é a alfândega,
onde toda a vida orgânica há de
pagar um dia o último imposto!”


Cap. I – Da Doença


Compressas frias, banhos mornos, cataplasmas sinapizadas, injeções intravenosas de electrargol, injeções hipodérmicas de óleo canforado, de cafeína, de esparteína, lavagens intestinais, laxativos e grande quantidade de poções e outros remédios internos.

Cap. II – Da Morte

Urna lisa, forrada com babado, envernizada, seis alças, com visor, véu, velas, encaminhamento da certidão de óbito, flores para ornamentação interna, livro de presença, paramentos religiosos, cinco anúncios na rádio local, translado de até 70 km e locomoção até a morada final.

                                              
Agradecimentos ao Augusto dos Anjos, à D. Ester Fialho e ao Pax Ervália que funciona em frente ao necrotério.



Milton Rezende,  A Sentinela em Fuga e Outras Ausências



CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO HOMEM

                                                                          (Drummond revisitado)

Os homens
não sabem que são homens
se soubessem, rejeitariam o nome.

O homem
desconhece o outro homem
que vive dentro ou fora dele
e que nunca foi visto.

O homem
e o absurdo de ser homem.

O homem
não tem consciência
do que viria a ser o homem
em sua acepção genérica.

O homem
é o estereótipo do homem.

O homem
é específico como o bicho
pior que isso, é dual
é indivíduo e social.

O homem
não suporta o peso de ser homem.

O homem
não tem importância alguma
para o próprio homem.

O homem
e o desespero de ser homem
não sendo, na ilusão de ser.

Os homens
quando reunidos em sociedade
não formam um todo, sequer uma parte.
Formam apenas uma irmandade
a caminho do nada.

Um homem
não destruirá um outro homem.
A arte, tenho esperança,
humanizará o homem.

Milton Rezende, O Acaso das Manhãs






BALADA DAS DUAS MULHERES NA PRAÇA

Gostaria de saber
quem são aquelas
mulheres da capa
do livro dos Aflitos.
Quem sabe assim
eu pudesse, voltando
ao passado e aos
costumes antigos,
dar a volta no sentido
contrário aos das moças
e perguntar-lhes:
“Quer voltar?”.
E aí, se fosse aceito o pedido,
eu estaria abrigado sob as
saias e a proteção do grande
guarda-chuvas de uma delas,
a do canto.


Milton Rezende, Uma Escada que Deságua no Silêncio

terça-feira, 6 de maio de 2014


 "li com atenção e espírito crítico o seu Jardim Simultâneo e posso lhe dizer, com a sinceridade de sempre, que o achei mais realizado do que os seus anteriores. Nele você continua a destilar um sarcasmo e uma visão pessimista da vida, mas em termos muito pessoais, temperados com uma sutil ironia (ou auto-comiseração) que atenua, de certa forma, a negatividade dos conceitos. Não posso deixar de dizer que ainda acho a sua poesia muito auto-centrada, introspectiva, com tendência a resumir o fazer poético à análise do eu-poético. Tenho certeza que sua visão de mundo irá expandir-se, não que você se torne um poeta de registro social (o que seria deplorável), mas que sua visão comece a englobar o de-fora e o mais-além em conjuntura ou superposição ao este-sou-eu-e-por isso-me-critico. Fiquei feliz por ver que você abandonou a feitura de poemas meramente lexicais. embora ainda tenha havido umas reincidências como no caso de Botânica e variações da flor e em Alcunhas. Também que tenha colocado em plano inferior um certo hermetismo que virou a razão de ser dos poetinhas mais novos. Você já domina um instrumento; está falando (tocando, poetando) para um público adulto, que conhece poesia. O poema Breve e longínquo é um bom exemplo disto".

por Ivo Barroso


sexta-feira, 2 de maio de 2014


Meu conterrâneo (de Ervália) o poeta Milton Rezende mostra neste livro, Textos e Ensaios, que domina igualmente o ensaio, o conto curto, a reflexão. Esses artigos trazem como adendo os Pensamentos de Juventude, uma série de frases de espírito que classificam Milton como um dos nossos melhores witticists. Vejam estas: “A omissão implícita é pior do que a recusa deliberada.” “Eu também sou um Casanova. Só que mal sucedido.” 

Por Ivo Barroso


quinta-feira, 1 de maio de 2014

ÍMOLA


Eu vejo a morte
deslizar sua sombra
discreta pelos boxes
da Fórmula 1, sem
que a percebam.

Na véspera,
eu a vejo checar
cada componente
e inscrever neles
o seu desígnio.

Eu vejo a morte
perfilar-se junto
ao grid de largada
no circuito da Itália,
e ali sendo aceita.

No instante seguinte
eu a vejo fluir
sobre o cockpit
e se postar com a foice
na lateral do muro.

Eu vejo a morte
(que todos afinal viram)
nas imagens concretas dos
destroços que explodiam
nas telas de todo o mundo.

Depois eu a vejo
como uma sombra esquálida
que se retirava de (S)cena, 
deixando o espetáculo para
os protagonistas vivos.

Milton Rezende, "A Sentinela em Fuga e Outras Ausências", 2011

 





Em Inventário de Sombras, o poeta Milton Rezende percorre um itinerário de perplexidade, sempre acompanhado de seus temas básicos como a solidão e a morte. Entretanto parece haver agora uma maior diversidade temática própria a um levantamento poético e existencial. São poemas que se situam no limite do equilíbrio, naquela região de fronteira onde se cruzam (e ao cruzarem se misturam nos poemas) a realidade, o enigma, a melancolia, o acaso e o fragmentário. Ao mesmo tempo em que se procura manter um nível de qualidade e lucidez em todas essas composições. A sombra do autor e as suas imagens simbólicas se projetam sobre todo o volume como uma camada densa, reflexiva e amargurada. Uma fotografia cujo negativo entremostra os contornos de um homem totalmente envolvido pelo espectro do seu inventário poético.


Por Ferreira Jr.