domingo, 24 de novembro de 2013

Uma leitura atenta e opiniões pertinentes sobre dois dos meus livros publicados e enviados ao crítico e poeta W.J.Solha.

Milton, gostei muito dos poemas desses dois livros que me enviou. Eles me evocaram constantemente dois autores geniais: Baudelaire e Augusto dos Anjos, embora sejam totalmente pessoais. A presença constante da chuva fica pro francês, que chega a ver nela as barras de uma vasta prisão, onde

l'Espoir,
Vaincu, pleure, et l'Angoisse atroce, despotique,
Sur mon crâne incliné plante son drapeau noir


Em Passagem das Horas você diz:

Fica de nós este resíduo
do que ainda não fomos.

Isso, que já é muito bom, fica mais preciso em SER:

O que sou é este vazio em mim.

Trágico & Cômico é contundente:

Encenei para mim mesmo uma tragicomédia
na qual sou o único personagem,
e o teatro em que represento
não é frequentado pelos homens.  

O tema é reiterado, com mais força ainda, em EX-100:

Sinto que estou exposto inteiro
para uma vitrine frequentada por cegos.

Em Ciclo, a desilusão é total:

A vida (...) hipnotiza a todos 
para que não vejam seus truques falhos.

Se há muita chuva em seus versos, os melhores deles, pareceu-me, estão em Aguaceiro:

A chuva cessou de chover
e agora eu posso
tirar as mãos dos bolsos
e atravessar a rua.

Mas já não tenho mãos
e nem tampouco posso
atravessar esta rua, pois
a água levou-me as pernas.

E a rua, embora chovida, está seca.
Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.

Os poemas que me pareceram mais completos e perfeitos:
Auto-retrato II, Duplicidade , o kafkiano Uma Vítima sem defesa e Avaliação Noturna

De tudo me fica a impressão de um poeta. De um autor que sabe exatamente o que é Poesia. 


--
WJ Solha


domingo, 10 de novembro de 2013


A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “
MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”.
 Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300


sábado, 2 de novembro de 2013

O VELÓRIO
“Dêem-me coroas de pano.
Dêem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes”
(Pedro Nava)

Eu estava dormindo quando o caixão chegou.
Acordei com luzes acesas, ruídos, vozes abafadas.
Levantei para ir ao banheiro e fui informado do velório.

A casa estava cheia de gente conhecida e estranhos.
Na sala o corpo já estava sendo velado e havia velas.
Um cheiro de morte impregnava o espaço intangível.

O defunto estava com as mãos cruzadas sobre o peito.
Flores cobriam todo seu corpo e o rosto estava lívido.
Os braços eram demasiados magros e cadavéricos.

Encostada numa parede jazia uma coroa roxa de latão
e a tampa enorme esperava o momento exato de cobrir
toda a vivência acumulada naquela vida que já não existia.

Nos próximos dias estávamos proibidos de ligar a televisão,
de ouvir música no velho rádio de madeira e a casa fechada.
Sobre o bolso da camisa foi costurada uma tarja de pano preto.

Milton Rezende, Uma Escada que Deságua no Silêncio, 2009.