sábado, 14 de setembro de 2013



INTRODUÇÃO
Por Carlos Águia

            Nunca tive (e nem acredito que se possa ter) a noção exata do alcance da poesia. Tempos atrás eu lia e escrevia críticas de romances, contos, crônicas e aquilo tudo fazia algum sentido para mim. Mas quando se tratava da apreciação de poemas a coisa se complicava bastante e o esforço parecia ter sido sempre em vão. A poesia escapulia. E nem era tanto pela “imperícia” de quem se debruçava sobre ela num esforço de decifração. É que ela própria, por natureza, se esquivava de qualquer análise que não fosse a comunhão tácita e silenciosa com o que ela tinha pretendido dizer.
            Licenciei-me do cargo de professor por problemas de saúde e fui para um sítio afastado, na zona rural à beira de uma rodovia asfaltada cujo entroncamento me remetia ao passado de minha juventude já distante.
            Compreendi, silenciosamente, que éramos todos portadores da mesma nostalgia complacente do passado e que nos enchíamos de lembranças do que nunca tinha havido e percorríamos os fatos com uma grande carga de mentira e saudade eloqüente, como se fôssemos (ou tivéssemos sido) algo além de nada e tivéssemos tido o nosso papel num cenário desaparecido.
            Protagonistas de uma realidade sem causa, mas tida como importante enquanto nos fazíamos viver. Pensava nessas coisas enquanto olhava as árvores e a sombra delas e a minha se fundiam no espelho das águas. Um convite recebido nas vésperas me perturbava e eu não sabia o que fazer: não me sentia em condições de atendê-lo, mas custava-me dizer que não podia, em se tratando da poesia do meu apreciado amigo. A editora que estava publicando as suas obras pediu-me para escrever a introdução ao seu volume de versos.
            Trata-se de uma breve apreciação de toda a sua produção até o momento, distribuída por vários livros, entre inéditos e publicados em pequenas tiragens. Arrisco a dizer (para espanto talvez de quem esteja lendo) que o Milton Rezende é um autor romântico, no sentido mais abrangente do termo e desvinculado, logicamente, dos preceitos da escola romântica vigente no século XIX.
            Ele é um escritor romântico na essência e o é também na vida, pois pude conhecê-lo e conviver com ele por muitos anos – na verdade, desde que me entendo por gente. Portanto, eu peço que considerem ao menos a minha opinião, antes de virem me contrapor recitando alguns duros poemas do autor em questão e destacando justamente a revolta subjacente dos seus versos e a contemporaneidade dos temas do seu discurso.
            Acontece que a amargura, a desilusão e a ironia presentes na obra do autor são na verdade características de toda a grande poesia que se faz desde sempre, mas há um humor secreto na literatura do Milton, que lhe é bastante peculiar, e que nos faz rir e chorar enquanto somos tocados e emocionados pela beleza e profundidade dos seus versos.
            Neste poeta eu percebo que a sensibilidade e a simplicidade são as chaves que permitem penetrar no seu universo particular e único: um jeito diferente, especial e todo próprio de captar a realidade e devolvê-la depois na forma de uma interpretação bastante pessoal e diversa do senso comum, mas que complementa a realidade com um elemento novo que geralmente nos escapa em nossa percepção do cotidiano.
            Faço questão de não citar nenhum de seus versos neste pequeno estudo, justamente para não induzir e nem tentar demonstrar aos leitores a justeza das minhas colocações. Cabe a quem interessar, que busquem no conjunto dessa obra, elementos do que eu digo ou mesmo a negação deles, pois nada substituirá a leitura dos poemas.
            Além do mais eu percebo a mesma coisa, essas mesmas características, também na sua prosa. No seu livro “A Magia e a Arte dos Cemitérios”, por exemplo, eu sinto a mesma sensação que tenho ao ler os seus poemas, como se fossem desdobramentos de um mesmo espírito inquieto e perdido, no que isso significa em termos de procura inócua e tentativas de desvendamento, à sombra do grande mistério que é a vida, a morte e todos os enigmas do amor. Eu soube, inclusive, que a idéia do autor é poder concluir uma trilogia iniciada com a publicação do livro sobre a sua terra natal, “De São Sebastião dos Aflitos a Ervália – Uma Introdução”. Parece que o projeto do terceiro e último volume dessa “Trilogia das Afinidades” teria algo a ver com a música e com o rock especificamente. O mesmo raciocínio se aplica também ao inédito “Mais uma Xícara de Café”, e aos artigos de “Textos e Ensaios”, publicados recentemente no formato livro.
            Em “O Acaso das Manhãs”, seu livro de estréia, publicado em 1986, o autor contava então 24 anos e o seu caminho já estava delineado. A seqüência do seu fazer poético só fez confirmar as tendências e seu estilo bastante característico. Em 1989 aparecia “Areia (À Fragmentação da Pedra)”, trazendo um certo aprofundamento de suas temáticas básicas. O terceiro livro, “Inventário de Sombras” foi editado em 1997 e pode-se dizer que seguia a mesma linha. Não quero dizer com isso que o autor tornava-se repetitivo, pois cada volume trazia novos desdobramentos e explorava outros ângulos dos temas desenvolvidos. A solidão, o amor e a morte sempre foram assuntos recorrentes e perpassam toda a sua obra. Em 2006 surgia “A Sentinela em Fuga e Outras Ausências” e mesclava a produção atual com alguns poemas que tinham ficado para trás e que foram agora incluídos, “zerando” de uma certa forma a sua trajetória emocional, numa feliz combinação de densidade e conteúdo.
            Percebo algumas mudanças sutis em seu livro “Uma Escada que Deságua no Silêncio”. Parece-me que o autor foi mais evocativo e buscou resgatar algumas lembranças da infância e juventude que estavam guardadas na sua memória de poeta. Paralelamente a isso, seguiu como já vinha fazendo em seus trabalhos anteriores, em simultaneidades de aspectos interessantes e singulares. O que virá depois? Somente o tempo nos dirá, mas conversando com o próprio Milton Rezende num banco rústico de madeira ele me pareceu, não obstante uma certa desesperança e cansaço, cheio de planos e de projetos futuros. A ilusão é o que nos move, assim ele me dizia, sorrindo vagamente e com os olhos marejados.
            A vida nos prepara muitas ciladas e rupturas e o comportamento humano que eu venho observando em meu consultório médico constitui matéria inesgotável para os homens dotados de alma sensível e interpretativa, como é o caso dos escritores e poetas, contudo não deve ser fácil a tarefa de estar o tempo todo se confrontando consigo mesmo diante de um espelho perverso que reflete a humanidade em seus momentos de grandeza e terrível desajuste de uma espécie fadada ao aniquilamento, tal como se percebe claramente neste novo volume de poemas “O Jardim Simultâneo”.
            Creio que junto com o Milton possam existir mais uns três ou quatro no mesmo nível, dentro da atual literatura brasileira, e é muito bom saber isso: que existem pessoas decifrando o vazio e dando um significado maior às nossas existências, para além do que temos visto estampado como o resultado coletivo do que se tem produzido, e que é muito pouco se lembrarmos de toda a tradição humanista daqueles grandes autores do passado. Principalmente Fernando Pessoa, Drummond e Augusto dos Anjos. Contudo ninguém poderia olhar para nenhum deles sem se sentir feliz e ofuscado, pois eles são raros, rarefeitos e necessários. O desafio é seguir vivendo, olhando de soslaio.

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Carlos Águia é médico e professor aposentado. Fundador e único membro da Ideutopia, já desativada.