GÊNESE DE UM NOME E
DE UM LIVRO
POR OUTRO SILVA
Há
momentos que eu preciso ser outro, por não me comportar em mim. Vou de uma a
outra janela tentando escapar do meu asilo em mim, numa agitação confusa e
contida a ferro e fogo. O passado avança e toca a campainha da casa
mal-assombrada que eu construí para abrigar a minha suposta estabilidade
emocional. Ninguém sabe quem sou, de onde eu venho e o que eu represento.
Quando penso que tudo caminha normal vem a nostalgia para me lembrar daquilo
que eu não fui. Iguarias que eu não comi agora me fazem falta quando o apetite
avança como se fosse uma doença. Carnes cristalizadas em frascos de alta
resolução nos escaninhos da memória. Nunca podendo ser eu mesmo busquei
coadjuvantes para coabitar o abismo das lembranças que não puderam ser. Como
uma caixinha de música da bailarina exausta de dançar no descompasso da
exposição demonstrativa na vitrine coberta de pó e olhares desatentos. Digo
alguma coisa em voz alta e não reconheço essa voz... Olho-me no espelho e pareço
com outro ser, coberto de maquiagem. Transfiguro-me para me suportar e
sobreviver. Hoje, por exemplo, fui a diversas repartições e em cada uma delas
eu era o desdobramento da necessidade de ser e de estar ali, representando algo
além e muito aquém de mim, mas eu nunca soube exatamente porque estou fazendo
assim. Havia um tanque na praça da minha infância e um peixe nadava ali e era
eu refletido no espelho das águas antes de acontecer o surto de identidade.
Decidi capturar o peixe para ver como que ele era por dentro, mas, nauseado,
joguei-me fora na sarjeta. Então fiquei bastante tempo comendo as algas
imaginárias que não eram, propriamente, a dieta de um ser humano. Cansado de
ser o que não se era nem poderia querer, saltei de galho em galho querendo me
perder entre os tufos de vegetação encoberta, para quem sabe renascer num
espasmo de prazer. Virei ave maldita e recolhia gravetos entre os destroços de
um idealismo absurdo que nunca aconteceu. Afastei-me da multidão com a mesma
ânsia e esperança com que entrara, percebendo que o coletivo não passava de um
ego escancarado forçando a entrada em portas afinal inexistentes. Herdei a
sensibilidade agonizante dos poetas e levei aquilo adiante como se fosse uma
bandeira e um estandarte do impossível. Nesse intervalo perdi ou deixar passar
toda e qualquer possibilidade de compartilhar um abrigo de almas que saciassem
a fome do momento, e que era tudo o que podíamos aspirar em nossa condição.
Danei então a escrever textos como se fossem ensaios de um aprendizado que
nunca se deu. Acrescentei alguns pensamentos elaborados na juventude sem
aguardar a prudente e necessária decantação do tempo. Depois de um período de
radicalismos e meias-verdades como todas as que se propagam por aí até hoje,
percebi a contradição e resolvi deixar de existir e entrei assim numa espécie
de falsidade ideológica de quem não se reconhece em nada. Mas admiro, ainda
hoje, a luta e a batalha dos nossos filhos empunhando bandeiras que um dia eu
segurei por uma beirada, naquela ponta de pano das velas sem mastro eriçadas
pelo mar bravio. Hoje sou outro e o mesmo Silva de sempre. Um Outro Silva que
republica agora o que sonhou e que não renega o sonho, apesar dos pesadelos.
Todos os dias, do cais do porto, partem caravelas num mar sem fim, dentro de
cada um de nós e dentro de mim que, afinal, nunca existi!
* extraído do livro "Textos e Ensaios"
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