sábado, 7 de dezembro de 2013

GÊNESE DE UM NOME E DE UM LIVRO

POR OUTRO SILVA


Há momentos que eu preciso ser outro, por não me comportar em mim. Vou de uma a outra janela tentando escapar do meu asilo em mim, numa agitação confusa e contida a ferro e fogo. O passado avança e toca a campainha da casa mal-assombrada que eu cons­truí para abrigar a minha suposta estabilidade emocional. Ninguém sabe quem sou, de onde eu venho e o que eu represento. Quando penso que tudo caminha normal vem a nostalgia para me lembrar daquilo que eu não fui. Iguarias que eu não comi agora me fazem falta quando o apetite avança como se fosse uma doença. Carnes cristalizadas em frascos de alta resolução nos escaninhos da me­mória. Nunca podendo ser eu mesmo busquei coadjuvantes para coabitar o abismo das lembranças que não puderam ser. Como uma caixinha de música da bailarina exausta de dançar no descompas­so da exposição demonstrativa na vitrine coberta de pó e olhares desatentos. Digo alguma coisa em voz alta e não reconheço essa voz... Olho-me no espelho e pareço com outro ser, coberto de ma­quiagem. Transfiguro-me para me suportar e sobreviver. Hoje, por exemplo, fui a diversas repartições e em cada uma delas eu era o desdobramento da necessidade de ser e de estar ali, representando algo além e muito aquém de mim, mas eu nunca soube exatamente porque estou fazendo assim. Havia um tanque na praça da minha infância e um peixe nadava ali e era eu refletido no espelho das águas antes de acontecer o surto de identidade. Decidi capturar o peixe para ver como que ele era por dentro, mas, nauseado, joguei­-me fora na sarjeta. Então fiquei bastante tempo comendo as algas imaginárias que não eram, propriamente, a dieta de um ser huma­no. Cansado de ser o que não se era nem poderia querer, saltei de galho em galho querendo me perder entre os tufos de vegetação encoberta, para quem sabe renascer num espasmo de prazer. Virei ave maldita e recolhia gravetos entre os destroços de um idealismo absurdo que nunca aconteceu. Afastei-me da multidão com a mes­ma ânsia e esperança com que entrara, percebendo que o coletivo não passava de um ego escancarado forçando a entrada em portas afinal inexistentes. Herdei a sensibilidade agonizante dos poetas e levei aquilo adiante como se fosse uma bandeira e um estandarte do impossível. Nesse intervalo perdi ou deixar passar toda e qual­quer possibilidade de compartilhar um abrigo de almas que sacias­sem a fome do momento, e que era tudo o que podíamos aspirar em nossa condição. Danei então a escrever textos como se fossem ensaios de um aprendizado que nunca se deu. Acrescentei alguns pensamentos elaborados na juventude sem aguardar a prudente e necessária decantação do tempo. Depois de um período de radica­lismos e meias-verdades como todas as que se propagam por aí até hoje, percebi a contradição e resolvi deixar de existir e entrei assim numa espécie de falsidade ideológica de quem não se reconhece em nada. Mas admiro, ainda hoje, a luta e a batalha dos nossos filhos empunhando bandeiras que um dia eu segurei por uma beirada, naquela ponta de pano das velas sem mastro eriçadas pelo mar bravio. Hoje sou outro e o mesmo Silva de sempre. Um Outro Silva que republica agora o que sonhou e que não renega o sonho, apesar dos pesadelos. Todos os dias, do cais do porto, partem caravelas num mar sem fim, dentro de cada um de nós e dentro de mim que, afinal, nunca existi!

* extraído do livro "Textos e Ensaios"

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